Anotações - parte 2
- Quintal de Aruanda
- 2 de mai. de 2018
- 4 min de leitura
Atualizado: 20 de jul. de 2018

Um dia a entidade me disse...
Embora já soubesse que o fechamento de ciclo seria intenso, só pude perceber a verdadeira dimensão disso pouco antes de começarem os trabalhos e ratificada bem próxima do fim. Sim! Já imaginava que neste dia sentiria coisas fora do meu senso de explicação. Esclareceria dúvidas antigas e formaria novas outras. Entenderia muito sobre mim e conheceria (ou reconheceria) um pouco sobre o outro. Tudo foi marcante, mas dois momentos resumem bem o turbilhão de sentimentos fortes deste dia. Depois explico!
...
O trabalho dos “negos” estava para começar. Não fazia a menor ideia do que aconteceria, mas sentia que seria diferente pela imagem que vi pouco antes de entrar no barracão. Não entendi bem ao certo o porquê, eu só senti que mexeu.
Oração, Ponto de Defumação, Hino da Umbanda, os “negos” descendo, tudo normal aos meus olhos até aí. Pai Banto começa puxando membros do círculo, formando uma corrente no meio do salão, senti uma energia passando pelo corpo no momento em que dei a mão para a pessoa puxada antes de mim. Paramos em frente ao congá. Depois disso só lembro em flashs.
Aos poucos o salão foi ficando escuro. Esse cheiro de fumo me derrubou. Pessoas cantavam. Não conseguia ver ninguém.
“Ainda bem não era dia, papai mandou chamar...”
- O que está acontecendo comigo? O que é isso que sinto?
- Apenas feche os olhos e se permita.
“Firma a cabeça meus filhos que tem preto prá chegar...”
- Onde estou? Devo estar sonhando.
- Concentra, “fio”!
“Nós somos tão pequeninos, somos filhos de Oxalá...”
- Não consigo ficar ereto, meu corpo parece que está se curvando.
“Sem a sua proteção não podemos trabalhar.”
- Minhas costas doem.
Me senti perdido. Não sabia o que estava acontecendo. Aquela energia. As vozes cantando pareciam distantes. Não conseguia olhar para ninguém. Despertei! Parado ali meu coração queimava mais rápido do que aquelas velas acesas no congá. Me deram alguma coisa para beber. Era água. Ainda tudo girava. Me senti estranho. Muitos rostos me observavam. Não conseguia ver ninguém. Vultos passavam por mim e alguns flutuavam. O tempo passava muito rápido. Também flutuei.
O trabalho dos “negos” foi finalizado com despedida. Senti naquela hora toda a tristeza do mundo dentro de mim. Olhava em volta. Todos choravam. As palavras do Pai Tião me faziam lembrar de coisas que me doíam. Em certo momento lembrei de minha mãe e do quanto estou ausente dela. Explodi em lágrimas. Não sabia se era comovido por todas as pessoas que também estavam chorando. Se era pela despedida do Pai Tião ou por suas palavras que me tocavam profundamente. Chorei! Chorei muito. Um choro dolorido, intenso, impossível de controlar.
A gira da tarde foi especialmente curadora para mim, pois aconteceu a céu aberto, numa tarde linda. Vibrei com o poder da natureza. Sintonizei com a energia dos orixás. Barulho das árvores balançando. Cheiro de mato. Vento no rosto. Água escorrendo pelas mãos, rosto e corpo, limpando tudo. Por um momento, de olhos fechados, me vi na minha cidade natal, na beira do rio. Oxum falou comigo: “Meu filho. Sou sua mãe. Você nunca estará só. A água é louvada, você é o herdeiro e de tudo que está no seu caminho. Lembre-se de seu nome”.
Caiu a noite. A escuridão foi cortada pela luz da fogueira. A alegria invadia um a um, manifestada por entidades que tinham na dança seu jeito próprio de trabalhar. Dancei sem saber dançar. De olhos fechados sem me preocupar se estava fazendo bonito. Só queria que essa alegria me invadisse também. A noite era fria. Senti! Não sabia se o calor era decorrente da fogueira ou da energia ali presente. Acho que era o calor e a alegria do coletivo. O calor humano. A energia divina. A Baiana das Miçangas me falou: “Sua hora tá chegando, bichin”. Chegou!
A energia virou. Mas a alegria não. Se tornou uma felicidade pura. Um gosto pela vida. Me fechei em mim. Senti o corpo balançar. Sorri levemente. Senti vontade de gargalhar. Gargalhei! Já sabia quem era. Dias antes havia sonhado com uma mulher, pele branca, cabelos negros, vestia amarelo e usava um pandeiro com fitas nas mãos. Eita Cigana forte! Quase me fez cair querendo dançar. Sentei. O corpo ainda dançava. De olhos fechados, mesmo em meio a cantorias, escutava o barulho do rio, por vezes o vento frio da noite e o quente da fogueira. Ouvia vozes no meio do mato. Sabia que não era de pessoas, mas não senti medo. A felicidade permaneceu em mim.
...
E o que me marcou? Antes de entrar no barracão a imagem do pai de santo sentado em um banco, talvez apreciando a natureza ou apenas olhando para dentro de si, me chamou atenção. Até agora não sei se o que via era ele mesmo ou se já era uma representação do Pai Tião. O fato é que essa imagem já me adiantava um pouco da emoção do trabalho que estava para acontecer. Se tivesse com o celular na mão, teria registrado em fotos. Mas está vivo em minha memória, assim como algo que disse: “Cada um de vocês é um ponto de luz, com a missão de brilhar para alguém”.
A frase não foi exatamente essa, pois nesse momento eu já estava bastante comovido e me desfazendo em lágrimas, mas ela explica um pouco de que nossa missão como Umbandista é, além de nos fortalecemos como uma família de axé, também é a de ajudar quem necessita, guiando-os no caminho do bem e da evolução espiritual.
Tempo depois, esse senso de família foi confirmado por meio do trabalho solicitado aos membros mais novos da casa, no preparo artesanal de café, desde a torra até ele pronto na xícara. Marcado ainda mais em mim pelas palavras do Seu Zé Pilintra, explicando: “O objetivo do trabalho nunca foi o preparo perfeito do café, mas sim na união de vocês para realiza-lo. O futuro da Nossa Casa depende disso”.
Entendi que só teremos sucesso como família de axé e até mesmo como pessoa, se caminharmos juntos, unidos pela mesma causa e movidos pelo amor e respeito com o outro. Sempre que eu me desanimar com algo, querer me afastar ou pensar em desistir, vou me lembrar desse momento e dessas palavras.
Finalizo dizendo que o principalmente de tudo não foi apenas o que as entidades me disseram, mas principalmente o que elas me fizeram sentir. Os trabalhos, em partes, serviram para expulsar meus próprios demônios, magoas e medos; depois como forma de cura para tudo o que me fizera mal até ali; por fim, para me recarregar e preparar para o próximo ciclo. Que assim seja!
Por: Um filho do Quintal.
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