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As mães de Vó Maria

  • Foto do escritor: Quintal de Aruanda
    Quintal de Aruanda
  • 3 de mai. de 2018
  • 4 min de leitura

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Observo o ritual com atenção. Gosto de ver os detalhes. Enxergo riqueza. Com saia branca longa ela chega discretamente. Sem alarmes e tremeliques no médium.


_Hihihi! Saravá, fio!


É gira aberta a consulência. Salão lotado para atendimento. Vó Maria se prepara para os trabalhos. Um pano branco e comprido vira um turbante simples na cabeça. Outro mais quadrado se abre em lenço estendido no colo. Pemba na mão o ponto é riscado.


_Fio, pega uma luz branca pra vó.


Observo a vela sendo riscada. Uma cruz no fundo. Círculo na ponta. Riscos compridos laterais. As vezes cruzes.


_A vó gosta de café bem melado, viu fio. Hihihi!


Vó Maria é das minhas! Para começar bem o dia, no caso os trabalhos, um café bem doce e uma fé bem forte. Coloco na sua xícara e adoço como se fosse para mim. Logo em seguida, com o ponto já firmado, acendo sua vela e pego seu pito de palha.


_O fio tá bão?


_ Sim, vó! Pronto para trabalhar.


_Hum! O fio tá bão mesmo?


_Sim, vó!


_Vamos trabalhar então, fio.


...


A busca pelo terreiro basicamente tem um padrão: mães e avós que intercedem pela família; problemas de saúde; relacionamento e questões de amor; tristeza e depressão; trabalho e dinheiro; mediunidade aflorada; e, problemas reais ou imaginários de demanda espiritual. Não que todos devam ser tratados de maneira igual ou genérica, porque cada caso é um caso e desprendem uma energia especifica para ser trabalhada. Mas, normalmente é isso.


Já presenciei Vó Maria falando sobre feminismo, autoestima e o posicionamento vitimista, sobre o poder do pensamento nas questões de demanda, relacionamento homossexual, sobre escolhas e seus reflexos em nossa vida. Mas os atendimentos que prendem minha atenção e que me faz refletir são os trabalhos realizados com as mães que intercedem pelos filhos. Há uma atmosfera de afeto e intimidade que eu não consigo explicar. Mas que me foi fazer sentido tempo depois.


...


Terminado os atendimentos, Vó Maria veio perguntar se eu havia observado que a maioria dos trabalhos, não dependiam diretamente de ação da espiritualidade, mas sim, apenas da boa vontade das pessoas em querer mudar. E realmente, era isso mesmo a minha percepção. As vezes as pessoas enxergam tudo como karma ou demanda espiritual, e não conseguem perceber que pode ser apenas os frutos da própria teimosia.


_O fio quer perguntar alguma coisa para vó antes de subir?


Esse era a oportunidade que eu precisava. Os atendimentos terminaram mais cedo e ainda havia tempo para algumas perguntas na tentativa de matar minha curiosidade sobre a entidade Vó Maria.


_Vó, tenho sim. Mas a vó responde apenas se achar que devo saber. Qual é o complemento do seu nome? Vó Maria de que? Se não demandar muito tempo, gostaria de ouvir a história da senhora também.


_Isso tem importância para fio?


_É curiosidade e também porque eu gosto de saber essas histórias.


_Hmm!


Nessa hora pensei que receberia uma negativa quanto aos questionamentos. Mas para minha surpresa, Vó Maria começou a responder.


_A vó nunca disse isso aqui, fio! Mas a vó vai te contar a história dela.


_Estou ouvindo, vó.


_A vó tem uma história triste, fio. Que só de lembrar já dá vontade de chorar.


_Se isso incomoda a vó e a faz se sentir triste de alguma maneira, não precisa contar, vó. Tudo bem para mim.


_A vó vai contar para o fio sim!


_Agradecido, vó.


_A vó já foi nega de colheita. Trabalhou nas plantações. Fazia o mesmo trabalho que nego homem. Mas nunca deixou o trabalho pesado endurecer o coração. Também foi nega de ajudar os outros fios e ser punida por isso, porque nego que ajudava o outro era visto como rebelde pelos brancos.


Me veio uma vontade de chorar. Chorei. Vi a primeira lágrima escorrendo pelo rosto da Vó Maria.


_Olha, fio! Tem umas águas saindo do rosto da vó. Hihihi!


Não consegui falar nada.


_A vó, quando fala disso, ainda sente o peso do chicote no coro. Mas nada disso foi mais difícil do que o fio de sangue que foi tirado dos braços da vó e vendido.


_Vó, nessa época, a vó ficou revoltada de alguma maneira por conta do filho que foi vendido?


_Não, fio! A vó sempre aceitou tudo o que vida deu, mas quando o fio de sangue foi vendido a vó ficou tão triste, mas tão triste, que pensou até em tirar a vida.


Tentei engolir o choro. Vó Maria não. Não sou muito bom com as palavras quando vejo alguém chorando, mas queria abraça-la até o choro parar.


_Hoje a vó trabalha para ajudar em qualquer situação. Mas a vó gosta mesmo é de ajudar essas mães que vem buscando conforto quando perde os fio.


Percebi que nesse momento, ela fazia uma referência àquelas mães dos trabalhos, cujos pedidos eram sempre relacionados às famílias e principalmente aos filhos. Vó Maria transferia para os consulentes o amor pelo que lhe foi tirado. Aprendi que, a exemplo de uma mãe, devemos ter um bom coração, mesmo que nele haja dor.


_Obrigado por compartilhar sua história comigo, vó. Agradecido mesmo, de coração.


_A vó que agradece, fio! Saravá pro cê!


_Ah, fio! É Conga! Vó Maria Conga.


Por: Um filho do Quintal.

 
 
 

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